terça-feira, 30 de agosto de 2011

Artigo sobre a Habitação Social - de Maria de Fatima Cabral Marques Gomes


HABITAÇÃO  E QUESTÃO SOCIAL - ANÁLISE DO CASO BRASILEIRO

Profa. Maria de Fatima Cabral Marques Gomes
Escola de Serviço Social/ Universidade Federal do Rio de Janeiro

Habitação  e questão social - análise do caso brasileiro (Resumo)
Este trabalho pretende, discutir numa perspectiva histórica a relação entre a questão social, entendida enquanto seqüela do conflito capital trabalho e a política de habitação, destacando os dados relativos à realidade brasileira, especialmente na cidade do Rio de Janeiro. Damos especial ênfase as novas tendências da política de habitação no Brasil, enquanto país periférico, no contexto da globalização da economia, da reestruturação produtiva e da orientação neoliberal do Estado, e os desafios postos para a universalização do direito à habitação no momento atual.

Palavras Chaves: Questão Social,  Política de Habitação  e Globalização da Economia.


 A Questão da habitação-  do capitalismo concorrencial ao fordista

A questão da habitação popular pode ser apreendida à luz do desenvolvimento capitalista que materializa no espaço da cidade os processos de trabalho. (LEFEBVRE, 1999).  Em 1872, no texto Contribuição ao Problema da Habitação, Engels estabelece uma relação entre a questão da habitação e a industrialização nascente, destacando as precárias condições de vida e de habitação do proletariado urbano no transcurso do século XIX na Europa. Esse primeiro momento, marcado pelo capitalismo concorrencial, se caracteriza por uma crise da habitação provocada pela industrialização e urbanização que atraem uma grande quantidade de migrantes para a cidade, sem uma intervenção do Estado na área social.  Assim, as formas de urbanização são, antes de tudo, formas de divisão social (e territorial) do trabalho, já que “a urbanização é um elemento chave das relações de produção” (LOJKINE, 1981:121).  Logo, a cidade capitalista, reúne as condições gerais para a produção e os meios de reprodução do capital e do trabalho, de modo que ficam explícitas as contradições das relações construídas a partir da apropriação privada dos bens socialmente produzidos.

No Brasil, na passagem do final do século XIX e início do século XX, com abolição da escravatura, com a crise da lavoura cafeeira e o nascente processo de industrialização uma massa de trabalhadores são atraídos subitamente para as grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo que se convertem em centros industriais. Soma-se à migração interna uma política de atração de migrantes europeus que, por estarem acostumados à disciplina da indústria, poderiam melhor contribuir para o desenvolvimento da industrialização no país. Esse processo de urbanização que se deu de forma acelerada muda o cenário urbano: o traçado das velhas cidades já não corresponde às exigências da nova indústria nem ao seu grande movimento. As ruas, sem uma infra-estrutura necessária, são alagadas, abrem-se novas vias de acesso e novas formas de transporte como os trens e os bondes. Isto é a cidade passa a refletir não só as transformações que se realizam no âmbito do capitalismo mundial, mas também se preparam para oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento industrial. Nesse contexto destaca-se a precariedade das habitações, sobretudo das classes subalternas. Segundo Abramo (2002), a forma de provisão habitacional verificada no capitalismo concorrencial é marcada pela presença do agente rentista realizada via o mercado de aluguéis. Esse mercado era restrito, sendo caracterizado por uma forte concentração fundiária urbana. É nesse período que surgem no Brasil as favelas e multiplicam-se os cortiços (subdivisão de mordias em um número possível de cubículos) enquanto espaço de habitação coletiva das camadas empobrecidas da população. O cortiço passa a ser então uma atividade de grande rentabilidade para o especulador uma vez que, para maior parte da população, torna-se a única opção possível de moradia, simbolizando o aviltamento e a humilhação imposta pelo sistema sócio-econômico de então.

Nesse momento, a política urbana, no Rio de Janeiro, enquanto capital da República, implementada na administração Pereira Passos e inspirada no modelo de Haussemann, em Paris, coloca-se como um tipo de intervenção estatal com um caráter muito mais urbanístico e de embelezamento da cidade. Essa política foi complementada com legislação urbana repressiva condensada no Código de Obras de 1937, que visava a proibição de cortiços infectados. Essa legislação combinada com a intervenção urbanística visava expulsar a população pobre para a periferia da cidade.

Fundada nos ideais positivistas e inspirada nos ideais urbanísticos de modernidade a Reforma Pereira Passos com projetos de renovação urbana, construção de grandes e arborizadas avenidas pretendia transformar a feição colonial da cidade dando-lhe uma aparência  de metrópole moderna comparável aos grandes centros europeus,  com o fim de atrair investimentos do capital estrangeiro para a economia. Os princípios que orientavam a Reforma fundavam-se na prática sanitária desse período baseada em conhecimentos científicos tradicionais de origem européia (corrente infectologista e teoria dos miasmas) que preconizava que os locais com grande aglomeração humana, com pouca circulação de ar, com águas estagnadas e sem esgotamento e limpeza adequados se tornavam ideais para a propagação do cólera, peste, febre amarela, difteria, febre tifóide e tuberculose, epidemias que assustavam a classe dominante no início do século. Segundo os sanitaristas daquela época, essas doenças seriam transmitidas pelo ar e não pelo contato físico. Os cortiços, por abrigarem habitações com essas características de insalubridade tornavam-se, portanto, o alvo dessas políticas saneadoras na cidade. Sanear a cidade, naquele momento, significou erradicar os cortiços de onde os focos contagiosos poderiam se alastrar.

A expulsão da população pobre do centro da cidade, local onde se estabeleceu a maior parte dos cortiços, levou ao incremento das favelas. Na realidade os cortiços e as favelas aparecem como a forma mais viável para o capital de reproduzir a classe trabalhadora a baixos custos.

 A modernização da cidade, através da Reforma Pereira Passos ao retirar a população pobre do centro urbano implicou no aprofundamento do processo de segregação da cidade que passa a ser mercado pela divisão entre centro e periferia. A primeira área e suas adjacências dotada de infra-estrutura e recursos naturais, habitada pela população mais abastada, enquanto a última desprovida de condições de vida adequada, ocupada pela população mais empobrecida. Nessa época, conforme foi reconhecido pelos historiadores, a questão social era ainda uma questão de polícia.

Dadas às dimensões que a questão social assume, as pressões da classe operária organizada e a nova forma de acumulação capitalista de tipo fordista que requer a intervenção do Estado na área social, inclusive na habitação, observa-se, nesse segundo momento, uma inflexão no que diz respeito ao enfrentamento da questão social, através da constituição do Welfare State, dando origem a uma política habitacional fordista. Nesse contexto, a intervenção pública, pelo menos nos países de economia mais socializada, estava centrada em uma oferta imobiliária articulada à eficiência econômica e social (JAILLET &BALLAIN, 1998).

 Deve-se destacar, no entanto, que nos países periféricos de industrialização tardia essa intervenção estatal foi bastante limitada, cobrindo apenas os segmentos mais politizados da população, caracterizando um o padrão do fordismo excludente. Nesse sentido, no Brasil, em 1933 é formulada uma política habitacional pontual e segmentada, abrangendo os setores mais organizados da classe trabalhadora  via IAPS (Institutos de Aposentadorias e Pensões) que cobriam parte dos segmentos da população inseridos no mercado formal de trabalho. A exclusão da maioria da população em relação a uma política habitacional faz com que, a despeito da proibição constante na lei, as favelas e cortiços se proliferem acompanhando o crescimento industrial que se fez sem nenhuma planificação. No Rio de Janeiro, por exemplo, as favelas passam a se inserir inclusive nas áreas nobres da cidade, como a zona sul, já que o Estado não respondia as demandas dessa população. No entanto, em 1946, é criado o primeiro órgão federal brasileiro na área de moradia -  a Fundação Casa Popular-  com a finalidade de centralizar a política de habitação. Vale ressaltar o fracasso das políticas desenvolvidas por essa instituição que  não dava conta das demandas da população de baixa renda no país.

As favelas no Rio de Janeiro eram vistas como aberrações não constando do código de obras de 1937.  Somente nos anos 40, quando são construídos no Rio de Janeiro os Parques Proletários para abrigar provisoriamente as famílias faveladas, contribuindo assim para diminuir as tensões na área de habitação. No entanto, a política dos parques proletários tinha caráter higienista revelando-se, segundo Burgos (1999) em uma verdadeira pedagogia civilizatória, considerando os favelados como pré cidadãos.

 Durante o Estado Novo, nos anos 40 Estado e Igreja unem-se diante do medo da ameaça comunista que pairava sobre as favelas cariocas. Assim, em 1946 é criada a Fundação Leão XIII e em 1955 a Cruzada São Sebastião pela Igreja Católica. Esta última liderada por Dom Helder Câmara lançou as sementes para um projeto de urbanização de favelas. Por outro lado, o Estado institui ao SERFHA -Serviço Especial de Recuperação de Habitações Anti-Higiênicas. Apesar de nos anos de 1960 esta última instituição ter passado por um período mais democrático, a idéia era de controle da população e cooptação das lideranças das favelas. Ainda na década de 1960, com o esvaziamento do SERFHA, foi criada a Companhia de Habitação Popular (COHAB).

 Em face dessa política direcionada às favelas de caráter puramente assistencialista que não tinha como referência os direitos de cidadania da população favelada, esse segmento da população passa a se organizar, congregando o conjunto das associações de moradores de favelas já existentes, através da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), criada em 1963.

Ao lado das instituições autoritárias e assistencialistas do Estado e da Igreja no Rio de Janeiro, foi também realizada uma experiência alternativa, visando a urbanização de favelas através da participação dos moradores. Essa experiência que contou com a participação de jovens arquitetos e técnicos da área social  foi desenvolvida pela Companhia de Desenvolvimento de Comunidade (CODESCO), em Brás de Pina, Morro União e Mata Machado, sendo imediatamente desmantelada durante a ditadura militar de 1964.

Com o Golpe Militar prevaleceu a política de remoção realizada de forma autoritária pela Coordenação de Habitação de Interesse Social da área Metropolitana do Grande Rio- (CHISAM). Justificavam a retirada das favelas, principalmente as localizadas na zonal sul da cidade (espaço ocupado pelas classes dominantes), por razões estéticas.  No entanto, uma das motivações mais poderosas para essa política de remoção, conforme foi constatado posteriormente, foi a liberação de lotes no centro da cidade para usos mais lucrativos como edifícios de luxo.  Essa política visou ainda incentivar as atividades do setor privado. Vale ressaltar que a CHISAM não cumpriu seu maior objetivo que era de exterminar as favelas, consideradas como um espaço de ocupação deformada e de população alienada. O fracasso de sua intervenção, segundo Perlman (2002), deve-se à inadimplência dos moradores dos conjuntos residenciais construídos, já que o sistema de financiamento alimentava-se dos lucros auferidos que deveriam aumentar o futuro suprimento de recursos para a construção de moradias. Além disso, ao invés de melhorar as condições de moradia da população ocasionaram grandes problemas na medida em que esses conjuntos foram construídos em área distantes dos centros urbanos, do mercado de trabalho e do comércio, sem um sistema de transporte público adequado e sem os equipamentos de saúde e educação básicos para a população. Assim, ao contrário de contribuírem para amenizar a questão social esse tipo de política contribuiu para aprofundá-la. O conjunto habitacional Cidade de Deus, construído nesse período e sob essa orientação, tornou-se emblemático desse tipo de intervenção e é mundialmente conhecido, através do filme do mesmo nome, em que se coloca de forma contundente a questão da violência como um subproduto dessa política de habitação

 Após o fracasso da política remocionista foram observadas intervenções de caráter pontual nas favelas, visando o atendimento das necessidades básicas da população em termos de saneamento e infra-estrutura. Além da cooptação das lideranças já dispersas e esfaceladas durante a ditadura militar, havia ainda uma indefinição ou uma falta de preocupação com o problema da regularização fundiária nas favelas.

 É importante ainda ressaltar que durante o regime militar foi criada uma política de habitação ao nível nacional na tentativa de legitimar o regime junto à população e atenuar a questão social que se agravara nos últimos anos com a crise do modelo de substituição de importações. Essa política, financiada através do Banco Nacional de Habitação (BNH), que tinha por objetivo atingir prioritariamente as classes subalternas foi ao longo dos anos sendo elitizada, levando ao agravamento da questão social. A crise econômica mundial do final dos anos de 1970 se refletiu em nosso país através das altas taxas de inflação, recessão e desemprego. Em decorrência disto e do aperto fiscal dos Estados e Municípios, crescem os níveis de inadimplência do Sistema Financeiro de Habitação- SFH, provocando desequilíbrios entre ativos e passivos do BNH, culminando com a sua extinção.

A extinção do BNH marca o final do regime urbano fordista no Brasil, isto é da tentativa de instauração no contexto do capitalismo fordista, de uma ampla regulação do Estado na área social, inclusive na área de habitação. Esta tentativa se configurou na realidade em um fordismo excludente na medida em que não incorporou a população como um todo, conforme ocorreu nos países do capitalismo central onde o assalariamento foi universalizado levando a ampliação dos diretos de cidadania entre eles o da moradia. Abramo (op. cit ) destaca dentre as modificações trazidas pelo regime urbano fordista : a ampliação do espaço da moradia para atender as demandas de consumo de bens duráveis, da mesma forma como o acesso à moradia se transforma em uma mercadoria de consumo mais amplo, como o mercado de massa de moradias. Por outro lado, o acesso passa a ser viabilizado pelo mercado de imóveis e não mais pelo mercado de aluguéis. Esse autor ressalta ainda que o acesso universal à moradia nos países centrais foi possibilitado por financiamentos do Estado ou financiamentos subsidiados pelo poder público, bem como pelo mercado imobiliário.

 No entanto, nos países latino-americanos o fordismo excluiu amplas camadas da população, o que contribuiu para o agravamento da questão social, conforme pode ser observado no breve relato acima. Tal situação pode ser constatada pelo crescimento e heterogeneização das favelas já existentes, pela proliferação de ocupações de terrenos vazios nas cidades brasileiras, bem como pelos loteamentos clandestinos. Abramo  (op . cit ) entende que os loteamentos clandestinos, que compõem o mercado informal de terras urbanas, são uma contrapartida da explosão do mercado de trabalho informal. Na sua maioria os loteamentos promoviam o acesso aos lotes a partir de esquemas próprios de financiamento em que as exigências eram muito menos rígidas que do que aquelas dos programas institucionais, possibilitando às famílias de baixa renda o acesso a um lote de terra urbana sem a comprovação de rendimentos mínimo ou regular.


Tendências recentes na política de habitação

Analisando esse conturbado período de crise que se instala no mundo a partir dos anos de 1970 e que em nosso país se soma a questões importantes que não foram resolvidas historicamente em termos sociais e, especialmente na área de habitação, em que a moradia permaneceu como privilégio e a estrutura fundiária urbana manteve-se concentrada, a perspectiva de melhoria da situação dos que nada herdaram do período anterior se amplia através das pressões dos movimentos sociais urbanos organizados em torno do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) que, através da Constituição de 1988, obteve avanços no sentido de universalizar formalmente os direitos de cidadania, e a participação popular nas políticas públicas, tendo sido, por isso, intitulada de Constituição cidadã.

Contudo, a essa Constituição parece ter esbarrado de um lado nos constrangimentos internacionais, sobretudo em face do novo cenário de financeirização da economia (CHESNAIS, 1996) e internos representado pela falência do modelo de substituição de importações, pelas reduzidas taxas de crescimento econômico, pelo crescente processo inflacionário, e pelo aumento das dívidas interna e externa, bem como pelo desmantelamento do Estado como regulador da vida social, dada à ofensiva neoliberal.  Para alguns autores, o Estado social brasileiro formalizado em nossa última constituição  foi abortado pela ausência das condições materiais para a sua concretização, ficando a mercê das orientações ditadas pelos organismos internacionais de financiamento.

Na realidade, dado o esgotamento do modelo fordista-keynesiano que veio acompanhado pela orientação neoliberal do Estado brasileiro a partir dos anos de 1990, a intervenção estatal em matéria de habitação popular não colocou em prática os avanços constitucionais, na medida em que o Estado tem abdicado do seu papel de regulador social. Além disso, a ideologia neoliberal engendra outras conseqüências, sobretudo no campo social, já que se constata uma perda de força do discurso da universalização em prol de uma visão focalizada da pobreza que se apresenta como mais inclusiva. Dessa forma, a política de habitação popular passa a ser focalizada, com o incentivo à produção individual/privada de moradias e a parceria/público privada e, embora descentralizada, não tem contado com a participação popular. Paradoxalmente, ao priorizar o nível local, através do processo de descentralização, esse processo não tem implicado na repartição de poder ou no repasse de recursos para o poder local.  Essa política de habitação de tipo pós- fordista, implementada com o viés neoliberal, tem contribuído, em nosso país, para agravar a questão social que assume novos contornos com as transformações o mundo do trabalho nesse novo regime de acumulação. Para Abramo (op.cit), esse novo padrão de intervenção é orientado pelos princípios de concorrência interurbana, pelo equilíbrio fiscal urbano, pela perspectiva de gestão urbana liberal e pela potencialização da eficiência dos equipamentos e serviços coletivos, subordinados à lógica da eficiência e valorização econômica. Dessa forma, a gestão urbana em tempos de concorrência interurbana procura potencializar a eficiência urbana dos equipamentos e serviços coletivos, já que a demanda de infra-estrutura pública é vista como altamente custosa e ineficiente do ponto de vista da utilização das redes de infra-estrutura existentes. A recuperação de cortiços nos centros urbanos para habitação de baixa renda se insere nessa nova tendência da política de habitação, bem como a urbanização de favelas.

A tendência de urbanização das favelas na malha urbana substitui as políticas de remoção dessa população para áreas da periferia distantes que, em geral, envolvem grandes obras de infra-estrutura. Por outro lado, muitos organismos internacionais têm ressaltado a importância de prover os habitantes da cidade informal de direitos de propriedade o que se torna parte da política de habitação em vários países na América Latina, inclusive o Brasil (FERNANDES, 2001). A política de equilíbrio fiscal dos municípios e a perspectiva de gestão urbana liberal são algumas das razões para a formulação de políticas de habitação que potencializam a rede de equipamentos existentes. Assim, a nova política de habitação que emergiu nos anos 90 objetiva, através de umaabordagem participativa, implementar programas e projetos para integrar a população marginalizada à cidade formal. De toda maneira, a reabilitação progressiva das favelas, após os anos de abandono, representa um avanço em termos do processo de construção da cidadania.

Na tentativa de instaurar um novo regime urbano que substitua o fordista, os critérios de estruturação urbana são concebidos a partir da concorrência urbana com a pretensão de homogeneizar o espaço da cidade para atrair mais investimentos externos, expulsando dos limites urbanos a população mais carente ou eliminando os territórios da informalidade (ABRAMO, op .cit). Nesse sentido, a intervenção em favelas é parte dos esforços a serem empreendidos para tornar a cidade mais atraente através da aplicação das normas urbanísticas para a construção de um espaço urbano mais homogêneo. Dessa forma, essas intervenções estão associadas às novas estratégias de marketing urbano que caracterizam a gestão de concorrência urbana.  Essas intervenções, embora pretendam dar conta das diferentes dimensões que envolvem a sustentatabilidade urbana, através da exigência da incorporação dos princípios econômicos, ecológicos e sociais, esses princípios passam a ser subordinados à lógica da eficiência e valorização econômica. As novas orientações para política de Habitação foram consensuadas na Conferência de Istambul, Habitat II, realizada em 1996, segundo ROLNIK, Raquel & SAULE JUNIOR, Nelson (1997).

Abramo ( op .cit) aponta ainda que no modelo pós-fordista nota-se uma nova forma de relação dos capitais financeiros com o mercado imobiliário formal que reduz o poder de mercado que os capitais promotores tinham e transfere aos capitais bancários e aos fundos de pensão um poder de mercado que não dispunham anteriormente. Dessa forma, a lógica que o mercado de financiamento parece indicar é a de uma perda de importância relativa dos capitais de promoção e sua relativa subordinação à lógica do mercado financeiro, já que o crédito habitacional passa a ser um produto capaz de concorrer com outras opções oferecidas pelo mercado.
Nesse sentido, observa-se ainda uma tendência a internacionalização dos mercados imobiliários. A estabilidade monetária e a fragilidade de nossa moeda no mercado internacional tem favorecido a entrada de capitais internacionais nos mercados imobiliários locais. Por outro lado, podemos ainda constatar o fluxo de remessa de dinheiro enviados pelos migrantes latino-americanos para seus países de origem. No caso brasileiro, os mineiros de Governador Valadares que foram para os Estados Unidos já se constituem nos principais atores do mercado imobiliário local. Um outro fator realcionado à internacionalização do mercado imobiliário está ligado à lavagem de dinheiro da economia do narcotráfico e da economia submersa do contrabando, já que existem evidências de que o mercado fundiário/imobiliário favoreceria a lavagem de dinheiro dessas atividades ilegais.

O Programa Favela Bairro e a questão social no Rio de Janeiro

O Programa Favela - Bairro pretende transformar as mais de 500 favelas do Rio de Janeiro em bairros populares, dotando-os de infra-estrutura básica e boas condições de acessibilidade, sem alterar o padrão de ocupação existente. O projeto leva em consideração os processos fundiários –imobiliários de estruturação das favelas e as melhorias realizadas pelos moradores, através de uma intervenção do tipo upgranding, de acordo com as recomendações do Habitat II, consolidando e urbanizando assentamentos, a partir da lógica e formas de organização da comunidade. O financiamento do Programa é a fundo perdido, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Esse projeto incorpora as orientações previstas no Plano Diretor


 (1992) da cidade que prevê um programa global de integração de favelas à cidade. Conforme ressalta Burgos (1999) este programa foi elaborado pelos quadros técnicos da Prefeitura, contando com pouca participação popular, embora expresse uma mudança de orientação de parcela significativa da sociedade carioca em relação às favelas. Em sua implementação, a participação da população é apenas buscada para instrumentalizar a implementação do Programa.

O escopo do Programa contempla a ampliação da pauta de direitos – questão do desemprego, a necessidade de estímulo à geração de renda, além de lazer, esporte e cultura, mas sua implementação, na maior parte dos casos, tem se restringido a uma intervenção urbanística o que não tem contribuído para o alcance do seu maior objetivo, que é de incorporação da favela à cidade formal.  Nesse sentido, a urbanização de favelas que deveria contribuir para incorporação da favela ao espaço urbano formal, oferecendo a seus habitantes um meio ambiente de qualidade, volta-se para a preocupação de inserir a cidade nos fluxos de globalização.

O programa tem se combinado a uma política de segurança pública repressiva e tem restringido à intervenções urbanísticas que tem contribuído para agravar a questão social, manifestada na escalada da violência na cidade com o crescimento das atividades ligadas ao narcotráfico que privatizam o espaço das favelas, inclusive naquelas que passaram por uma processo de urbanização planejada, via Favela –Bairro. O recrudescimento da questão social pode ainda ser verificado na cidade com aumento da população sem domicílio e com o crescimento e a proliferação de novas favelas.

Dessa forma, embora o Programa tenha incluído pautas do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) como a urbanização de favelas, universalização dos serviços públicos e a regularização fundiária de assentamentos populares, os interesses populares estão subordinados à perspectiva de inserção da cidade no quadro da competitividade urbana.

Para Abramo (op .cit.), do ponto de vista do financiamento público, a novidade desse projeto é a perspectiva de transformar a favela em bairro popular, recuperar essas áreas para fins fiscais urbanos. Isto é, ao dotar as áreas de favelas de equipamentos, serviços e uma estrutura de acessibilidade, a municipalidade poderia inseri-la em seu cadastro imobiliário e passar a aplicar tanto o controle urbanístico, quanto à cobrança do imposto predial e territorial urbano. Trata-se de uma tentativa do governo local de promover políticas sociais em que a principal preocupação é a de integrar à estrutura da cidade formal, os territórios da pobreza e da informalidade que escapam ao controle administrativo das municipalidades. Por outro lado, segundo esse autor, a política de urbanização favorece a ampliação do mercado fundiário-imobiliário urbano sob controle da administração pública, permitindo um ganho eventual na receita tributária a partir das transações de compra e venda.

No entanto, por falta de uma intervenção mais ampla que contemple ações sociais e de dinamização da economia das áreas afetadas essas iniciativas de incorporação da informalidade fundiária-imobiliária à estrutura formal são limitadas e insustentáveis considerando que as condições de vida têm uma relação estreita com as mudanças econômicas e sociais no interior da favela e na cidade.

É inegável, no entanto, que a intervenção do Estado em termos de habitação de interesse social, possibilita algumas condições para a constituição de uma cidadania real, embora através dessa intervenção se reproduza a oposição entre dominantes e dominados de forma mais complexa, compreendendo uma participação subordinada dos dominados. Entendemos que, embora as políticas de urbanização planejadas conduzidas pelo Estado, como é o caso do Programa Favela-Bairro, possam atenuar as distorções evidenciadas no processo de urbanização no Rio de Janeiro, as desigualdades sociais presentes no espaço urbano têm suas raízes na própria formação social brasileira e que é decorrente das relações sociais estabelecidas entre os habitantes da cidade, não apenas em nível local e no espaço de moradia, mas fundamentalmente a partir das relações de trabalho. Todavia, a construção de moradias para os segmentos mais empobrecidos da população, ainda que não transforme sua condição social, lhes possibilita uma melhoria de vida (GOMES, 2002).

Ainda que se reconheça que as questões urbanas têm causas estruturais, cujas soluções devem ser encaminhadas nos planos nacional e internacional, vale ressaltar a importância do poder local como um sujeito capaz de enfrentar os problemas urbanos, com a pobreza, o processo de exclusão social e a degradação ambiental.

Dessa forma, a política de habitação elaborada para a população de baixa renda, a partir dos anos 90, pode ser vista como tentativa de estabelecimento de um modelo de intervenção que na prática tem se mostrado  incapaz de contribuir para superação das enormes desigualdades em relação ao acesso à moradia e à infra-estrutura urbana nas cidades brasileiras.

Assim, a política de habitação do Rio de Janeiro formulada segundo os princípios do Movimento Nacional pela Reforma Urbana que orientam o Plano Diretor é rearticulada segundo os interesses do capital demonstrando o peso que a cidade passa a ter no desenvolvimento econômico no atual momento.

É necessário, pois, investir em políticas públicas universais que contêm com a participação e o controle da população. Dessa forma, podemos encontrar um potencial para desafiar a dinâmica da acumulação capitalista, resgatando os interesses coletivos.

Dessa forma, no Brasil, a despeito da vitória do Movimento Nacional pela Reforma Urbana que conseguiu inserir no texto constitucional a garantia dos interesses coletivos no espaço urbano, os ganhos políticos desse movimento estão ameaçados, já que os interesses públicos estão sendo subordinados aos interesses privados, conforme se verifica na política de habitação. 

Compreendemos as especificidades e dilemas das políticas sociais, enquanto responsabilidade do Estado, contextualizada no cenário das mudanças societárias contemporâneas. No entanto, consideramos que o Estado deve ter um papel fundamental na garantia dos interesses públicos.


Notas


[1] O Plano Diretor do Rio de Janeiro define a política a ser adotada no município, além de prescrever a necessidade de implantação de lotes urbanizados, de moradias populares, urbanização e regularização de favelas e loteamentos de baixa renda.


Bibliografía

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BURGOS, M. dos Parques Proletários ao Favela- Bairro – as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro- in Zaluar, A & Alvito, M. - Um século de Favela.Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999.

CHESNAIS, F.A Mundialização do Capital, São Paulo. São Pau7lo: Xamã, 1996.

FERNANDES, E.“Perspectivas para a renovação das políticas de legalização de favelas”, in Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XV, N°1, 2001, p. 9-38

GOMES, M. “Cidadania e Espaço Público numa experiência de urbanização de Favelas”. In RAMOS, Maria Helena Rauta Ramos (org.)  Metamorfoses Sociais e Políticas Urbanas. Rio de Janeiro, DP&A, 2002.

JAILLET,& BALLAIN La mise em ouvre dês politiques locasles de l´habitat, entre régulation du marché et action sociale in : (sur la direction de SEGAUD, BONVALET& BRUN)  Logement et Habitat l´etat des savoirs. Éditions la Découverte, Paris XIII., 1998.

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ROLNIK, R. & SAULE JUNIOR, N. HabitatII- assentamentos humanos côo tema global in:  BONDUKI, Nabil Habitat –as práticas bem-sucedidas em habitação, meio ambiente e gestão urbana nas cidades brasileiras. 2a. ed., São Paulo: Studio Nobel, 1997.

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